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Posts Tagged ‘cabelo cacheado’

Sonia Zaghetto

Para Alexandre, Isadora, Eduarda e Iaponira (que inspiraram essa crônica), Rose Silveira, Edmárcia dos Ursinhos, Helga Oliveira, Mayara Paz, Rafael Querrer, Ana Carolina Peixoto, Flavya Mutran, Ana Lucia Ajuz, Marton Maués e Heloisa.

Duda disparou pela sala como se fosse foguete. Aterrissou num sofá limpinho, esparramando uma onda de cabelos enrolados e fofos sobre o travesseiro.  A mãe espichou o olho e disse, como quem não quer nada:

– Quer fazer chapinha?

Arregalou os olhos, espantada:

– Quem, eu?

– Lógico, Eduarda. E eu agora falo com o peixe do aquário? Duda sabia que quando a mãe dispensava o apelido era porque estava irritada, brava, aborrecida ou tudo isso junto.

– Ah, mãe, não quero não. E a menina esticou um dos cachinhos que lhe caíam na testa. Não era bem esticar, Duda na verdade fazia uns carinhos escondidos no cabelo. E os cachinhos  respondiam se sacudindo, balançando e tremelicando como se fossem feitos de gelatina.

– Como não quer, Duda?

– Não quero, mãe. E sabe por quê? Porque meu cabelo não gosta.

– Que novidade é essa, Eduarda? E desde quando cabelo gosta ou desgosta de alguma coisa?  – A menina ficou quieta: ser chamada duas vezes de “Eduarda” na mesma conversa era sinal perigoso.

A resposta chegou até a portinhola da boca de Duda. Ela engoliu todas as palavras, mas a danadinha da língua – que, como toda língua de criança, sofria de inquietação crônica e quase nunca era vista quieta – escancarou o bocão da Duda e expulsou todas as palavricas juntas. Xiiii. E lá se foram elas, atropelando os dentinhos, fazendo cócega nas gengivas. Deslizaram para fora e agora estavam espalhadas pela sala, entrando direto nos ouvidos da mamãe.

– É que eu vejo que quando você faz essa tal chapinha, basta olhar pela janela para ficar triste. Se enxerga uma nuvem de chuva, fica com medo. Se na TV falam que vai chover, fica nervosa. E se cai água no cabelo, aí ninguém aguenta, né mãe? Braavaaaa!

A mãe arregalou os olhos, mas a linguinha de Duda andava impossível. Não satisfeita, ela empurrou mais um bocado de palavras boca afora. E desta vez elas não só entraram pelos ouvidos da mãe, mas também se empoleiraram bem no alto da cabeça dela:

– Já eu, eu sou criança e meu cabelo também. Se chove, meus cachinhos dançam tanto que até ficam meio magrinhos. Se faz sol eles também gostam, ficam todos assanhados. E eu gosto tanto…

A mãe olhou para aquele cabelo arrepiado, valente, cacheado e enroscado. Lembrou que Duda jamais reclamava da cabeleira. Ao contrário, sua filha sorria, tomava banho de chuva, bebendo água direto das nuvens e sem medo que os cabelos simplesmente desmanchassem ao contato com a água.

Mamãe ficou em silêncio durante um tempo enorme, as palavras empoleiradas no alto da cabeça agora fazendo uma coreografia bem na direção da testa.

– E o que mais? Perguntou finalmente.

Duda nem pestanejou:

– Eu acho que sei porque os meus cabelos não gostam dessa tal chapinha.

– E por que eles não gostariam? Ficam tão sedosos e macios. – respondeu a mãe, com o ar mais satisfeito desse mundo.

– Muito simples – disse Duda, com jeito de sabichona – os cabelos cacheados adoram ser assim, enroladinhos, em forma de molinhas…

– Molinhas, de coisa mole? Provocou a mãe.

– Não, mãe, molinhas de “mola pequena”: mo-li-nha

– Ah, suspirou a mãe.

– Olha – Duda esticou o cabelo e o soltou. Os cachinhos pularam todos juntos numa festa só.

– Viu? A menina sacudia a cabeça com ar triunfante. Se eu faço chapinha, eles não pulam desse jeito.

A mãe teve de concordar: cabelos com chapinha pareciam crianças com roupa engomada, dura e tesa, coisa de adulto, que tira a espontaneidade e rouba a alegria.

– Cachinho é cabelo-criança, mãe! Duda fez cara de quem havia descoberto algo muito importante.

A mãe não resistiu. Lembrou da filha sacudindo os caracóis castanhos, fazendo festança de cabelo quando batia um vento. Duda acordava com todos eles bem assanhadinhos para mostrar que dormiram super bem.  Parecia mesmo que a cabeleira e sua dona estavam rindo para o mundo, gargalhando na chuva ou no sol, serelepes a toda hora.

A mãe sorriu. E Duda, esticando alguns fios feitos de mola e de alegria, resumiu tudo em palavras coloridas:

– Olha, mãe: o meu é cabelo de gente feliz! 🙂

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