Querido M.A.,
escrevo-te esta missiva usando a segunda pessoa do singular, pois acredito que já são poucos os que, no Brasil, usam adequadamente o pronome tu, que tem um ar de tempos passados, senhoriais. Peço-te que releves tal intimidade, dado o nosso longo tempo de convivência. Também é necessário que entendas que escolhi tal forma de tratamento e outros recursos da escrita dos tempos antigos pois assim tenho mais chances de que um possível violador de correspondências nada compreenda do que vou te narrar. Esta carta é secreta e assim deve permanecer. Explicar-te-ei agora porque corro sérios riscos ao me ligar a ti.
O objetivo desta é informar-te que a tristeza ultimamente tem me consumido a alma. E é por tua causa que meu coração chora. Aqui, na terra onde nascemos – eu e tu – há uma nova moda: a facilidade instantânea e a todo custo. Por causa dela instituiu-se uma lei que agora rege a vida de boa parte de nossos compatriotas: a que determina que todo esforço intelectual é crime. Estender a mão em direção a um dicionário cansa sobremaneira os meus contemporâneos. Ler um livro como os teus tornou-se tarefa hercúlea. Entender tuas palavras exige demais das novas gerações.
Assim, querido amigo, é com com extremo pesar que te informo que és persona non grata em muitos círculos. Teus enormes parágrafos, repletos de ironia, metáforas e assemelhados, sobrecarregam os jovens cérebros treinados para tuitar (algo mais ou menos como um exercício permanente de elaborar de forma banal aquele micro conto do Hemingway, sendo que em vez de contar uma história densa, informa-se apenas o óbvio de um cotidiano que a ninguém interessa).
Pesa-me, sobremaneira, informar-te que estás ultrapassado em todos os aspectos. Usas pontuação corretamente, escolhes palavras rebuscadas, constróis parágrafos longos (com apostos, ó criminoso!). Por essas e outras, o zeloso Estado brasileiro, atento às necessidades dos estudantes brasileiros, financia uma brilhante intelectual que reescreverá, em linguagem moderna e acessível, estes teus textos ininteligíveis e bizarros. E dá-te, por feliz: muito pior ocorreu com o Lobato e Twain, pouco tempo atrás!
Usas expressões como sagaz, quiçá ou gárrula! Que queres com isto? Causar um trauma nas jovens mentes preparadas apenas para postar after sex selfies? Um dia eu te explico do que se trata, mas não agora: és um senhor do século dezenove e não estás pronto para saber detalhes sobre como a exibição da intimidade em altas vozes e – literalmente – para o planeta inteiro tornou-se uma das marcas desse novo tempo.
Já não tens mais lugar neste país, onde aquela bela flor do Lácio jaz ressecada, sepultada em um cemitério denominado de “Redes Sociais”.
Assim, caro amigo, esta missiva serve para te informar de que nossa amizade, a partir de hoje, será secreta. Guardo-te ainda, em estremecimentos d´alma, mas já não posso correr o risco de ser excluída da sociedade por tua causa. Dizer publicamente que te amo seria suicídio: os estultos julgar-me-iam pretensiosa, esnobe e boçal; eu perderia amizades, desgostosas com meu desrespeito às correntes formas de expressão que tudo permitem, inclusive o assassinato da gramática (psiu, falemos baixo: isso agora é palavrão).
Certa estou que não me queres no ostracismo. Sei que desejas o meu bem. Assim, despeço-me de ti, mas antes lego-te uma lista de palavras que deves banir de teus livros. Estão organizadas em ordem alfabética a fim de combinar com a facilidade que é a tônica da Era dos Obtusos, que é como denomino os tempos atuais.
Sê feliz em tua estante empoeirada.
Sempre tua,
Soninha
Index
A de alforria, abacamartado, alcova, arcádia, albardeiro, arcaísmos, alienista
B de bacamarte, bufão, botica, broquel
C de crisálidas, casmurro, coxia, cáspite, Carola, Catete, Cosme Velho, cambraia, chilra e carpideiras
D de desenlace, derradeira, disparate, dadival, Dante
E de escritor, escrivão, êmulo, espúrio, erudito, estupefato e epístola
F de falenas, farfalhar, falaço, fúlvido, furtadelas e folgazão
G de garrida, gárrula, gasconada, gongorismo
H de hombridade, homérico, homúnculo
I de ironia, inexorabilidade, imarcescíveis, imprecação
J de jazigo, jimbo, jubiloso
L de literatura, livros, leitura, luminescência, longanimidade, laborioso
M de marmota, miliciano, memórias, manuscritos, míngua, mantilha, mulato, metáfora, mofino
N de niilismo, negligenciado, nosocômio
O de ostracismo, olvido, obreia, óbolo
P de póstumas, petalógica, periódicos, patranha, pusilânime, Platão, páginas, poesia e pastiche
Q de quiçá, queixada, quejando, queixume
R de relíquias, rotundo,
S de sagaz, sequazes, sátira, Schopenhauer, senhorinhas
T de tipógrafo, traslado, taciturno, tertúlias
U de úlcera, ufanista, ulterior, úbere
V de vivenda, versejar, vertiginoso, vestidura, véu, vigília, Virgílio, vate
X de xalma, xeleléu, xendengue
Z de zagunchada, zagaia, zambaio e zambaneira